Exploração turística acessível é uma exigência para a mais ampla concretização do direito constitucional à cultura.
As noções de cidade e cidadania estão, desde épocas remotas, associadas a ideias de muros, fortificações, divisões e barreiras, cujas arquitetura, geografia e proxemia têm sempre algo a nos dizer. Muitos desses elementos arquitetônicos constituem hoje bens tombados de elevado valor cultural, que não podem ser descaracterizados, afinal o art. 17 do velho Decreto-Lei nº 25/1937 ordena que “as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas”.
Mas como fica a pessoa com deficiência nesse contexto? Como ela pode usufruir dos seus direitos citadinos – entre eles o direito à cultura e o direito à cidade – em plenitude?
Essa preocupação não é nova e eventuais fissuras, barreiras e obstáculos – aqui, não somente metafóricos – são enfrentados há tempos com marcos normativos importantes como a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes da Assembleia Geral da ONU, de 1975, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgado pelo Decreto 6.949/2009, e, mais recentemente, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, criado pela Lei nº 13.146/15.
Nessa mesma direção, tem-se registrado reiteradamente em inúmeros documentos e conferências do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) que a conservação dos prédios tombados deve ter por elemento base a sua utilização. Tanto o art. 5º da Carta de Veneza como a art. 21 da Carta de Burra indicam que adaptação é necessária e aceitável, mas que ela deve produzir um impacto mínimo no significado cultural do lugar.
Esses parâmetros normativos não estão somente no panorama internacional. Em território doméstico, texto normativo dá concretude à conciliação dos interesses das pessoas com deficiência e das tutelas dos bens jurídicos aparentemente opostos. A Lei nº 10.098/00, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, reservou o seu art. 25 à enunciação expressa de que “as disposições desta Lei aplicam-se aos edifícios ou imóveis declarados bens de interesse cultural ou de valor histórico-artístico, desde que as modificações necessárias observem as normas específicas reguladoras destes bens”.
Posteriormente, o IPHAN publicou a Instrução Normativa nº 1/2003 e a Portaria nº 420/2010 que atendem diretamente aos anseios dessa cidadania cultural. Ambos os parâmetros normativos direcionam as intervenções nos prédios históricos por vias que atendam ao conceito de desenho universal, promovendo o acesso à “maior variedade de pessoas com diferentes características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável”.
Ora, se, tanto nacional como internacionalmente, essa discussão já tem produzido um manancial regulatório que bem serve de guia à ampliação do acesso das pessoas com deficiência a lugares com valor histórico, artístico e cultural, resta agora, a título de exemplo, analisar algumas best practices concretizadoras.
Em 1996, a União Europeia criou o “Conceito Europeu de Acessibilidade” (CEA). Desde então, tem-se empreendido, de maneira mais especial nas distintas localidades com valor cultural, propostas de adaptação arquitetônica que levem em conta alguns critérios importantes, como o contraste com os padrões arquitetônicos dos prédios protegidos; a reversibilidade das medidas; o baixo impacto da adaptação em relação a toda a obra; o atendimento ao maior número de pessoas com fatores antropométricos distintos; dentre outros.
A instalação de elevadores nos Jardins de Versailles e no Coliseu de Roma, as inúmeras modificações realizadas na Abadia de Montserrat em solo barcelonês e na Queen’s House em Greenwich, e as rampas móveis nos prédios de Sintra, em Portugal, fizeram parte dessas iniciativas que o European Concept for Accessibility estimulou. O que resta destacado em todas essas situações, é o empenho, a especificidade e a multissetorialidade de cada estudo de adaptação.
Cada uma das obras adaptativas citadas, empregou não somente profissionais dos órgãos governamentais de proteção ao patrimônio cultural, mas amplos programas de consultoria voltados à acessibilidade. Inclusive, em experiências como a do Reino Unido, há a participação de associações da sociedade civil, capital privado e público, envolvidos na gestão do patrimônio histórico e consequentemente na adaptação dos prédios às regras de desenho universal.
Para além disso, embora existam iniciativas e standards para a compatibilização da acessibilidade e proteção da herança cultural, cada obra é precedida por um estudo específico, que vise os critérios acima citados dentro de cada situação. A acessibilidade não se dá somente por meio de adaptações físicas, mas por comunicação inclusiva e o extenso uso de tecnologias, que favoreçam a integração.
No caso brasileiro, um maior o reconhecimento do potencial turístico-econômico de seus sítios históricos acessíveis seria bastante benéfico. Foi reconhecendo o potencial sócio-econômico detido pelo “turismo acessível”, que o governo francês criou a marca Tourisme & Handicap, cuja propriedade é da Secretaria de Estado responsável pelo turismo. Ela serve para identificar equipamentos e sítios turísticos acessíveis, bem como para promover a sensibilização e formação de profissionais para a atuação no ramo.
É também diante de dados de mercado como os da Open Doors Organization, que demonstram que o turismo de pessoas adultas com deficiência gerou, no ano de 2015, aproximadamente 17.3 bilhões de dólares, que se encontra mais um incentivo para o aprimoramento da experiência nacional.
Esse tipo de exploração turística acessível é uma exigência para a mais ampla concretização do direito constitucional à cultura, além de ser compatível com os princípios e objetivos estabelecidos na Carta de Veneza, na Conferência de Nara e na Carta de Burra, da ICOMOS. Há poucos meses, por força do Decreto nº 10.107, de 6 de novembro de 2019, cultura e turismo passaram a integrar o mesmo Ministério, em Brasília, assemelhando-se ao exitoso modelo italiano do Ministero dei beni e delle attività culturali e del turismo, o MiBACT, em Roma. Esse pequeno passo formal, se aliado a outras políticas culturais efetivas, pode mostrar-se uma estratégia frutífera e criativa para o Estado dar cumprimento sistêmico e harmonioso aos arts. 215 e 216 da constituição.
Fonte: Jota.